Eu já tinha lido matérias e visto filmes, muitos filmes, sobre relatos estranhos e experiências sem sentido ou mesmo místicas. Eu já tinha visto isso por vezes demais em minha vida.
Mas por algum motivo inexplicável, nos últimos dias eu tinha passado de expectadora de filmes muitas vezes ruins, para a protagonista principal de uma obra estranha que era a minha vida. Pergunte-me há poucos meses o que eu achava de experiências como a que eu estava vivendo naquele exato momento, e eu riria de você. Eu me chamaria de louca. No mínimo.
Mas vendo naquele momento aqueles bondosos olhos profundamente verdes do Dr. Cotter, eu sentia meu ultimo fio de racionalidade se partindo, fragmento por fragmento, tentando destruir a pouca credibilidade que eu ainda tinha por mim mesma.
Eu o conhecia. Eu tinha plena certeza que eu o conhecia.
Eu lembrava naquele momento com exatidão do meu sonho, do primeiro instante na estranha rua de calçamento assimétrico, do homem loiro e magnético que me inspirava tanto medo como atração – justamente como um inseto atraído pelo brilho de uma lâmpada que o irá matar se ele pousar sobre sua superfície. Perigo. Medo. Insanidade. Tudo misturado em um olhar profundo e claro que me gelava até os ossos.
E no auge do meu desespero eu me lembrei de abrir meus olhos e me vi perdida em um macio tapete claro. Um homem jovem, lindo, e com uma voz tranqüilizadora e um olhar que me dizia que tudo ficaria bem, assim como meu pai havia feito tantas vezes.
- Srta Nicolle Crystal, será que posso ter de volta a sua atenção, por um minuto?
Eu tentei fixar meus olhos de volta para o psiquiatra, calmamente sentado na poltrona da pequena saleta de sua suíte no Hotel Nichols. O que ele dizia? Tentei prestar atenção em sua voz profunda e tranqüila, sem nenhum sinal de sotaque, lembrando mentalmente todas as perguntas que ele tinha me feito desde que sentei na poltrona confortável e reclinável que ele me ofereceu. Sério, analisando toda a suíte, não sabia como os Cotter conseguiam estas coisas em uma suíte de Hotel. A pequena saleta tinha uma linda escrivaninha de madeira com um laptop novíssimo e vários livros e papeis. Alem da poltrona verde clara, havia mais três poltronas, todas muito confortáveis, um tapete que deveria custar mais que toda a mobília do meu quarto. Tudo transpirava conforto, mas muito mais que isso, como se realmente eles tivessem criado uma atmosfera de lar, diferente dos frios quartos de hotéis que vemos por aí.
Não que eu já tenha visto muitos em minha vida... Muito menos um Nichols cinco estrelas.
- Srta Nicolle? – ele perguntou novamente.
Ok. Nicolle, você esta fazendo papel de idiota na frente de um psiquiatra. Muito inteligente de sua parte. - Desculpe-me Dr. Cotter – eu rapidamente dei o meu mais angelical sorriso acompanhado de uma doce voz. – Eu me distraí um pouco com esta saleta. È linda.
- Sim, é – ele respondeu com um sorriso humilde – as meninas se divertem com estas coisas. Sempre que temos que viajar, minhas sobrinhas extrapolam um pouco com as acomodações.
- Elas moram com o senhor há muito tempo?
Eu estava ardendo de curiosidade, mas tentei não parecer muito enxerida. Era estranho um cara lindo como aquele cuidando de duas sobrinhas adolescentes. Sabe como é, os noticiários contam cada história por estes dias...
Ele manteve o sorriso simples nos lábios. Seu rosto não traía o menor indicio de ter percebido minha pergunta um pouco maldosa.
- Aideen esta comigo desde os sete anos, quando seus pais morreram. Ela é filha de minha irmã. Sou seu tutor desde então. Estella esta conosco há menos tempo, ela é filha de um tio distante, e queria estudar fora. Ela é uma ótima companhia para Aideen, e somos uma família desde então.
Eu sorri para a sua simples revelação. Mas não pude deixar de fazer as contas mentalmente. Aideen estava com ele há uns dez anos. Quando ele virou seu tutor ele deveria ter o que, no máximo uns vinte anos, a contar por sua aparência. Eu comecei a admirar o Dr. Cotter imediatamente.
- Mas o que nos leva de volta a senhorita. Já verificamos que não tem distúrbios comportamentais e nem alimentares. E muito menos com bebida alcoólica.
Eu neguei veementemente com a cabeça. Aquelas primeiras perguntas foram embaraçosas.
“Você tem problemas com drogas? Isso inclui até mesmo um cigarro esporádico com os amigos? Bebidas? Nem em festas?”
Embaraçoso.
- Então seja sincera comigo. Quando exatamente seu problema de insônia começou?
Eu respirei profundamente e fiz as contas mentalmente. Eu não queria mentir para ele, mas também não queria contar todos os detalhes insanos de minhas noites mal dormidas.
- Há alguns meses eu comecei a ter alguns sonhos sem sentido. Então eu não dormia exatamente bem todas as noites. Mas de uns dias para cá começou a ficar insuportável. Eu mal consigo dormir há mais de uma semana.
Ele se inclinou em sua poltrona na minha direção. Seus olhos eram tão sérios e bondosos que eu sabia que deveria ser difícil mentir para ele. Ponto.
- Algum grande stress nos últimos dias que pode ter causado esse distúrbio? Como separação dos pais, briga com o namorado , ou provas escolares?
- Eu me mudei com a minha família para a Flórida há pouco mais de um mês. Foi inesperado e sim, talvez um pouco estressante, mas eu não sou tão maria-mole a este ponto doutor.
- Não creio que maria mole seja necessariamente o termo Nicolle – ele sorria imensamente, mostrando todos os dentes , brancos e bonitos – Mas uma mudança repentina de cidade e rotina tumultua a vida de alguém bem mais velho que você , imagina um adolescente acostumado com sua rotina, amigos , escola? Acho que temos um ponto para seguir a partir daí. Mas eu quero saber mais destes sonhos.
- O que têm eles? – eu quase pulei da cadeira. Não era algo que eu queria falar.
- Me fale mais sobre eles. Quero saber tudo que você se lembra, cores, pessoas envolvidas, seus sentimentos. O campo dos sonhos nos mostra partes escondidas de nosso subconsciente. É muito importante para o tratamento sabermos o conteúdo deles.
- Eu não me lembro muito bem. São confusos e sabe, eu nunca lembro realmente os meus sonhos...
Ele suspirou pesadamente e levantou da sua poltrona, indo sentar atrás da escrivaninha, aonde começou a anotar muitas coisas em um papel. Em seguida abriu uma gaveta e tirou um caderno com capa de couro, daqueles que parecem caros. Pensou por um momento e passou os dedos longos e bonitos em seus cabelos um pouco compridos demais já que ele era um médico, mas aquele visual combinava com ele. Mesmo o jeans moderno e a simples camiseta branca combinavam com ele. Se as minhas antigas amigas de Seattle vissem esse cara, provavelmente cairiam em cima dele como abelhas em um pote de mel. Para falar a verdade acho que até a minha mãe ficaria caidinha por ele. Acho que até a minha avó...
Ele levantou os olhos novamente para mim e ficou me estudando.
Olha Nicolle Crystal fazendo papel de idiota na frente de um psiquiatra novamente.
Quanta estupidez. Eu queria me bater.
- Senhorita Nicolle, eu vou te passar um roteiro com dicas para uma boa noite de sono. Ambiente tranqüilo, comidas leves, até uma música ambiente ajuda a relaxar.
Lindo. Eu estava sendo dispensada como possível paciente e nem ao menos tinha meu problema resolvido. E eu nem estava secando o psiquiatra , juro. Não com todo aquele ar paternal ... Quando meu rosto deve ter começado a desmoronar de decepção ele sorriu novamente e me estendeu o caderno de couro.
- Quero que você anote tudo que se lembrar ao acordar . Cada detalhe, cor ou sensação são importantes em seus sonhos. Você pode me mostrar ou não, isso é uma escolha livre e pessoal , mas o importante é anotar tudo o que puder , o máximo de detalhes.
- O senhor me aceita como paciente então? Mas precisamos conversar sobre o valor das consultas, mesmo a de hoje... Eu não tenho muito dinheiro...
Ele me cortou pousando a mão no caderno, gentil e profissional ao mesmo tempo.
- Eu estou em ano sabático. Justamente estudando sonhos e distúrbios de sono e comportamentais. Minhas sobrinhas estão me acompanhando, pois decidimos uma educação em casa, com um tutor. Não pense no valor das consultas, isso seria parte dos meus estudos e eu prometo que farei tudo ao meu alcance para ajudá-la como paciente. Desde que você seja autorizada pelos seus pais, já que é menor de idade.
- Eu não – claro que eu tentei mentir a minha idade, mas percebi que seria uma grande estupidez – Eu posso providenciar isso doutor.
- Peça para sua mãe ou seu pai me ligarem, ou melhor, se eles quiserem estou a disposição para que me conheçam e a minha pesquisa. Sua amiga pode lhe acompanhar também , em todas as consultas se você quiser , é bom para as meninas conhecer novas amigas. Espero realmente que possa lhe ajudar.
Ele levantou da cadeira em direção a porta. Era a deixa para eu acompanhá-lo até a saída. Eu me sentia mais calma e reconfortada, apesar de tentar compreender a sensação e a minha certeza de que eu o conhecia. Sim eu o conhecia. Não havia a menor duvida que ele era o homem que eu havia sonhado noites atrás. Eu reconhecia aquele olhar bondoso em qualquer lugar do mundo.
Eu o acompanhei imediatamente, saindo pela porta tendo a sensação de estar quilos mais leve, mas ao mesmo tempo com dezenas de pergunta rondando a minha mente.
Encontramos Danielle sentada no chão da sala na saída, junto com as duas garotas, Aideen e Estella, com vários livros e anotações espalhados pelo chão, compenetradas em algo que parecia muito sério, pelas suas feições.
Assim que parecemos na sala todas levantaram os seus olhos. Danielle levantou imediatamente, correndo em minha direção. Aideen, com um sorriso radioso no rosto imaculadamente branco a acompanhou. Estella nem se mexeu. Ficou ali, me olhando de cima abaixo, como se eu fosse algo que ela não entendia. Mas mesmo assim algo que era visivelmente menor que ela.
Eu olhei para todas, medindo-as, todas diferentes e contrastantes.
Se eu pudesse dar um nome para Danielle seria Amizade. Aideen radiosa como era eu chamaria de Luz.
Mas Estella...
Vaca fascista e nojenta. É, era um bom nome para aquela metida.
Aideen ficou animadíssima que eu agora seria paciente do Dr. Cotter. Marcamos a minha segunda consulta para a tarde seguinte, se meus pais autorizassem.
Danielle não poderia parecer menos animada. Chegava a ser um pouco vergonhoso. Ela me mostrou toda a pesquisa que ela e as novas amigas bruxas estavam fazendo sobre poções e ervas. Eu fui convidada por Aideen para me juntar a elas em seus estudos, após as minhas consultas com o doutor. Eu sorri polidamente e prometi pensar no assunto. Eu tinha muito que digerir ainda naquela noite.
Mas elas estavam tão integradas e tão felizes por estar juntas – mesmo a vaca italiana parecia animada com Danielle – que eu tentei não parecer muito blasé. Tinha algo naquela cena que fez uma parte de minha mente se sentir completa.
Incluindo o antagonismo de Estella. Tudo parecia um conjunto, matematicamente calculado. Eu analisei toda aquela situação em menos de um segundo. Algo ainda não encaixava como peças soltas de um quebra cabeças. Tinha uma lógica, mas apenas quando todas as peças estivessem em seus lugares à imagem final se revelaria.
Despedimos-nos das garotas – quer dizer, eu me despedi de Aideen , pois Estella no máximo acenou com a cabeça em minha direção – e Aideen murmurou uma pequena benção em irlandês que eu tentei fingir que não entendi. Se eu explicasse para Danielle que eu conhecia, não teria paz por semanas.
Minha mente estava leve, porém meu coração estava um pouco apertado.
E de repente tudo aconteceu. Foi como um flash. Um brilho violento alaranjado explodiu bem diante de meus olhos. Eu os apertei com força , e ele desapareceu..
Mas não o medo que eu estava sentindo. .
Assim que descemos do elevador, eu quase corri em direção a entrada, para pegar o meu carro. Eu obriguei Danielle a correr para acompanhar meu ritmo. Eu percebi o olhar assustado da recepcionista ao ver a minha corrida incandescida.
- Nicolle! – Danielle gritava – eu pensei que você tinha gostado do Dr. Cotter, parecia que você tinha gostado...
Eu olhei por sobre o meu ombro.
- Eu gostei , mas eu quero ir embora daqui. Agora.
Em poucos segundos eu entrei em meu carro, praticamente arrancando as chaves das mãos do manobrista ruivo. Nada de gorjetas para você amigo, eu quero, eu preciso ir embora.
Assim que dei a partida no meu carro, Dann colocou gentilmente as mãos sobre as minhas , que agarravam o volante convulsivamente.
- O que aconteceu ?
Eu pensei por um minuto.
- Eu não sei ... eu quero ir embora daqui antes que ...
- Antes que o que ?
- Eu não sei ... – o perto em meu peito aumentou , assim como uma sensação de profunda tristeza que me invadia. Veio sem avisar , uma sensação estranha que fazia eu sentir um vazio dentro do meu estômago. Oh meu Deus.
Danielle me olhou com uma expressão calma, porem os seus olhos ardiam como chamas. O que estava acontecendo comigo ? Ela parecia diferente ...
- Vire a direita – ela ordenou, a voz profundamente controlada , contrastando com o brilho feroz em seus olhos – Você precisa de um café . Vamos na Starbucks . Você esta passando por muita coisa, acho que um pouco de cafeína em seu organismo vai lhe acalmar um pouco.
- Esse é um modo sutil de dizer que eu estou agindo como louca ?
Ela revirou os olhos.
- Café, Nicolle . Café.
Aquela palavra fez eu sentir um estalo na minha cabeça. Eu salivei por um Browed Coffee.
E eu segui o seu comando , indo em direção ao shopping , procurando um ponto de equilíbrio escondido em minha mente perturbada .
E foi então que eu avistei, parado bem em frente a fonte de água do Cityplace,um
enorme carro branco que agora eu reconheceria em qualquer lugar do mundo.
Droga. Era tudo que eu precisava.
